Análises

Análise: Scorn

É inegável que a primeira coisa que me chamou atenção em Scorn, anunciado em novembro de 2014, foi o seu visual biopunk totalmente inspirado nas obras de H. R. Giger, artista que desenvolveu o Xenomorfo e influenciou tantas outras características dos mundos da franquia Alien. Lançado em 14 de outubro deste ano para Xbox Series X e Series S e PC, o game desenvolvido pela Ebb Software através de um financiamento coletivo encontra problemas na ação e no combate, além de uma certa monotonia em seus quebra-cabeças, mas triunfa ao criar uma atmosfera medonha, viva, podre e uma história cheia de dualidades. A Casa do Cogumelo recebeu uma cópia para PC e te conta, abaixo, tudo sobre o que achamos do game.

Uma história cheia de dualidades

Um protagonista silencioso cai no centro de uma civilização morta ao tentar chegar em uma torre em um deserto. É a partir disso que a história de Scorn começa. Não existe passado ou presente. Não existem aliados. Também não existem diálogos, textos ou quaisquer outras indicações linguísticas ou visuais que destacam a narrativa e a mecânica do game. O nada é tudo no começo do jogo, que não faz a mínima questão em guiar o jogador por uma civilização totalmente decadente e podre. Isso significa que é preciso descobrir o mundo de Scorn aos poucos ao explorar todos as salas feitas de estruturas cheias de carne e cantos perturbadores.

Os primeiros passos pelo ambiente biopunk, que mistura máquinas com carne, sangue e osso, revelam algumas das possibilidades de interação com o mundo de Scorn: existem painéis interativos que abrem portas, existem portas que só podem ser abertas com um controle especial, e existem quebra-cabeças que precisam ser solucionados. E é bem no começo dessa história que o jogo evidencia sua máxima: solucione os puzzles e fuja da decadência. Há uma leve virada narrativa em Scorn, que acontece quando um parasita se cola no protagonista, mas a história só ganha destaques verdadeiros na conclusão do game – mas só se você se jogar de corpo e alma pra tentar chegar à sua própria conclusão do jogo.

Não entrarei em maiores detalhes para não estragar sua experiência, mas te digo que entender a história de Scorn não é tarefa das mais fáceis. É muito provável que cada jogador interprete a história de um modo diferente, mas é possível destacar que a dualidade das coisas é o ponto central do game e está presente do começo ao fim. Vida e parasitismo. Máquina e carne. Dor e cura. Morte e renascimento. Começo e fim. E chegar a essa conclusão, para mim, foi uma experiência e tanto que engrandeceu o que Scorn conta em suas mais de 6 horas de duração.

Tiro, puzzle e mais puzzle

Scorn não inova mecanicamente falando. O game é um “escape room” nos moldes de games como Portal: solucione um quebra-cabeça e avance – embora não conte com personagens falantes, bolos ou mentiras. O game, entretanto, aposta na simplicidade e na dificuldade dos puzzles pra instigar o jogador a continuar a jornada, o que pode ter um efeito negativo, já que são muitos quebra-cabeças pra pouca informação concreta sobre o que está acontecendo. Dividido em 5 atos, o jogo sempre segue o mesmo padrão: resolva quebra-cabeças para atualizar um controle que abre portas. Sem a atualização do controle, não é possível avançar. Com a dinâmica principal destacada, te digo que é preciso explorar muito e interagir com diferentes tipos de mecanismos para descobrir caminhos e avançar no game. O jogo exige muito mais do intelecto, raciocínio lógico e curiosidade do que habilidades com o controle, uma vez que é preciso apertar poucos botões pra resolver um quebra-cabeça. E, salve um acontecimento ou outro, como um bebê encasulado e um ser gigantesco diretamente retirado do game I Have No Mouth, and I Must Scream, de 1996, solucionar quebra-cabeças é uma tarefa tão mecânica quanto respirar. No fim das contas, solucionar um puzzle é dar um passo em direção às resoluções dos mistérios de Scorn. E foi exatamente isso que se tornou meu objetivo principal em poucas minutos de jogatina: solucionar quebra-cabeças, chegar ao final, entender a história.

Com tanta exploração e solução de puzzles, me senti sobrecarregado ao caminhar em direção ao fim do jogo, principalmente quando criaturinhas cuspidoras de ácido entram em cena e a ação começa. O combate não chega a ser desastroso, mas é frustrante em praticamente todos os momentos, principalmente quando precisamos usar uma arma hidráulica sem a mínima precisão. As coisas melhoram quando a pistola e a escopeta aparecem, mas os inimigos são frágeis e morrem com poucos tiros. No fim, o combate fica em terceiro plano, e derrotar as criaturas se assemelha a aliviar uma coceira irritante: coce, termine com a coceira, e a vida segue sem irritações. É muito mais vantajoso sair correndo do que enfrentar os pedaços de carne ambulantes que adoram regurgitar. Aliás, eu disse que não há nenhuma interface ou aviso visual no game, mas isso muda quando os inimigos aparecem. Se sofrer ataques, o protagonista vê sua barra de vida – que aparece no canto superior esquerdo da tela – diminuir. Para restaurar a vida do personagem é preciso usar uma criatura “tripofóbica” que armazena sangue de maquinários bizarros e se liga à veia do protagonista para enchê-lo de fluído corporal. Não poderia ser diferente, afinal, tudo no mundo de Scorn é bizarro, incluindo a forma como recuperamos a vida do protagonista. E, sinceramente, a bizarrice é um dos pontos altos do game.

Não demorei pra me frustrar com os combates do game, e rapidamente entendi que vale mais a pena sair correndo do que gastar munição nas bizarras criaturas. A sensação de que um mundo como Scorn poderia oferecer ameaças melhores é escancarada a cada vez que uma galinha putrefata aparecia. A cada ato finalizado, a vontade era justamente de terminar o próximo desafio para, enfim, concluir e compreender a história do game.

Uma ambientação triunfante

Scorn apresenta um espetáculo visual muito diferente das direções de arte de tantos outros games de horror e tira toda sua essência das obras de H. R. Giger, artista por trás do design do Xenomorfo e outras criaturas da franquia Alien. As máquinas contém carne e ossos, as paredes são cobertas de fungos e gosmas, e as criaturas parecem sair diretamente de uma mente completamente perturbada. É com essa ambientação “Gigeriana” que Scorn triunfa absurdamente. Não é sobre a qualidade gráfica e a quantidade de pixels na tela, falo sobre o mundo criado pela Ebb Software.

Scorn é uma viagem à uma das camadas mais perturbadoras da mente humana, tudo isso sem ser explicitamente violento e agressivo. Claro, há sangue e tripas aqui e acolá, mas o ponto é que toda a atmosfera é feita para deixar o jogador perturbado e com vontade de terminar o game o quanto antes. Mas mesmo com o anseio de finalizá-lo logo, o game gera uma enorme vontade de continuar ali, de explorar todos seus cantos ao mesmo tempo que gera a vontade de simplesmente sair correndo sem olhar pra trás. A dualidade é, também, parte da experiência. E essa experiência não causa medo ou pavor, mas o desconforto é parte fundamental do que senti do começo ao fim. A ambientação de Scorn é a melhor parte do game.

Sons do inferno

A trilha sonora é outro destaque de Scorn. Desde o começo do jogo, as músicas de Aethek e Lustmord são impecáveis e se encaixam em todos os pontos da proposta do game. É desconfortável, é sombria, causa ansiedade e, mais do que tudo, é perturbadora. Ao se encaixar com pontos chave do game, a trilha sonora eleva Scorn a um patamar que o game não chegaria sem os macabros sons de sintetizadores, batidas metálicas desafinadas, violinos e instrumentos de sopro.

Veredito

Scorn é um game com uma proposta simples e que consegue cumprir muito bem o que propõe – mesmo que tropece em alguns pontos. A atmosfera biopunk criada pela Ebb Software é primorosa, mas a subjetividade da história, que não é demarcada por uma narrativa mais explícita pode causar desinteresse em alguns jogadores. No meu caso, foi o contrário, e no ato final consegui conectar pontos e compreender a história do game – porém, sei que nem todos os jogadores terão o interesse em querer conectar tais pontos por conta própria e aí ´é possível esbarrar em problemas. Além disso, os combates sempre contra os mesmos três tipos de criaturas deixam o gameplay desinteressante, e essa repetição pode, por algumas vezes, quebrar expectativas e frustrar. No entanto, ressalvo e ressalto que o mundo de Scorn encontra triunfo na sua ambientação e no seu visual biopunk. Scorn é um bom jogo com o potencial para ser uma obra prima.