Colunas

Por trás do lore: Ni no Kuni – Wrath of White Witch um RPG pacifista

Quem é familiarizado com títulos dos Estúdios Ghibli sabe reconhecer uma espécie de aura em suas produções, que sempre parecem etéreas, quase estáticas em um sonho constante. O legado de Miyazaki, o mais importante de seus diretores, é criar animações de fantasia utópica, onde todos os conflitos se resolvem no diálogo e na aceitação de diferenças, e por isso mesmo é muito tranquilo afirmar que todos os heróis Ghibli são pacifistas, mesmo aqueles que usam de violência para defesa de um território, como é o caso de San, de Princesa Mononoke, figura de completo ódio e recusa do humano, justamente por conta de nossa natureza destrutiva.

E como no jogo Ni no Kuni – Wrath of the White Witch, a produtora teve participação direta da nas animações e em sua construção narrativa, a história não poderia seguir por um caminho diferente. Tudo começa em Motorville, que a exemplo das outras construções oníricas de um passado ideologizado, tema constante nos longas dos estúdios Ghibli, é uma charmosa cidade de tons pasteis típica de um Estados Unidos dos anos 60. Nela, mora Oliver, um menino muito sensível, que em uma das cenas iniciais do jogo é consolado ao receber um boneco de pelúcia costurado artesanalmente por sua própria mãe. É esse o protagonista retratado pela lente da parceria dos Estudios Ghibli e a produtora Level-5, responsável por outros jogos de referência do estilo, como Inazuma Eleven, Yo-Kai Watch e Dark Cloud.

Oliver, apesar de fazer a figura perfeita do monomito como proposto por Joseph Campbell em sua teoria da Jornada do Herói, não demonstra curiosidade, nenhum sonho de conhecer terras distantes ou qualquer vontade de enfrentar um possível mal que assola o mundo, como estamos acostumados a encontrar em jogos de RPG. Pelo contrário, ele é lançado na aventura pela dor, convencido a viajar para uma terra distante por seu boneco de pelúcia, que se revela um Alto Senhor das Fadas, na intenção de salvar a vida de Alicia, sua mãe.

Exemplo da família evolutiva do Wambat retirado do Wizard’s companion, livro guia do jogo

No universo de Ni No Kuni, a violência é completamente alegórica. Apesar de existirem combates, eles são protagonizados por familiares, espécie de criaturas que respondem à alma de seus mestres, controlados através de magia. Seus designs são simples, cativantes, e muitas vezes, parecem ter sido projetados no traço de uma criança. O próprio Oliver assume um arquétipo de feiticeiro durante as lutas, e participa mais ativamente lançando magias à distância do que ativamente entrando em contato físico contra seus adversários.

Enquanto a história se desenvolve, descobrimos que Oliver é chamado de “O Puro de Coração”, destinado por profecias a derrotar o vilão cuja principal forma de destruição é roubar todo tipo de virtude do coração das pessoas, e por isso a principal mecânica de interações entre NPCs consiste em restaurar, através de sua magia, a alma dos moradores das diferentes cidades do jogo, pegando pedaços de auto-controle, paciência e amor de pessoas onde essas virtudes são abundantes, e doar para quem as falta.

As pessoas com o coração partido são capazes de magoar outras, desistir de projetos pessoais e até mesmo tornarem-se más, como vamos descobrindo aos poucos. O que o jogo sugere é que se todas as pessoas, quando estão plenas, são boas, não existem realmente vilões no mundo. O caminho natural de Oliver e seus amigos é o perdão e a redenção. É possível ver, quando se resolvem os conflitos que costuram o plot do jogo, que a proposta central de Akihiro Hino, chefe de produção do Level-5 que encabeçou o título, é mostrar que mesmo um mundo caótico e cheio de conflitos pode ser apaziguado pelo reconhecimento da dor do outro.

Jogar Ni No Kuni: Wrath of the White Witch e entender sua narrativa é um exercício de retorno a um pensamento gentil, mas não necessariamente inocente. É como entrar em um mundo onde o mal não é definitivo, e a malícia, a má intenção, o rancor, são todos sentimentos sombras, projetados pelos buracos de algo que deveria ser pleno. A narrativa é contrária às histórias épicas de justiça vingativa. É um jogo que propõe que a vitória sobre o mal não reside na conquista do poder, mas sim, na aplicação da empatia em ação. Fazer algo de positivo mesmo para alguém que quer literalmente destruir todo o universo pode, no final das contas, salvá-lo.