O que torna um jogo como Breath of Wild grandioso pra você? Muita gente pode responder que o ambicioso mundo aberto, com infinitas possibilidades de interação e a liberdade de condução do personagem no mapa, a partir do momento que ele se torna livre para acesso, nas primeiras horas de jogo; outras pessoas podem se referir ao cuidadoso e polido estilo gráfico em cell shading com tons suaves, que em alguns momentos torna-se tão bonito que é até difícil acreditar tratar-se, na verdade, de um jogo lançado originalmente para o Wii-u.
Essas qualidades são inegáveis, mas, pelo menos para mim (e para o que acredito ainda ser uma boa parte dos jogadores), a grande potência do jogo encontra-se em sua narrativa épica cuidadosamente construída, que em harmonia com a trilha sonora, compõe grandes momentos de exploração de ruínas e estruturas abandonadas, nos embala em harmonias sutis acompanhando memórias singelas e explosões polifônicas dando o tom de revelações, tragédias e superações. Esse desenho de imagens e sons em uma jogabilidade praticamente livre constroem um crescendo de emoções, picos de catarse e arrebatamento de sentidos.
As narrativas
Em sua história, o herói, desmemoriado, acorda após um sono de cem anos, e descobre que Hyrule, sua terra natal, foi destruída durante um evento apocalíptico chamado Calamidade. O mundo que conheceu chegou ao fim, e esse fim é retratado de uma forma sutil, dolorosa e trágica enquanto suas memórias retornam ao decorrer do jogo.
Apesar de Link ter seu luto negado pela amnesia, a dor está presente na voz de todos os NPCs que relembram tempos mais felizes, com familiares e amigos que pereceram na tragédia da ascensão da Malícia de Ganon. Esse pesar encontra voz principalmente no personagem de Zelda. A princesa e encarnação da deusa Hylia, que dá nome à franquia, entregou sua própria força vital para selar Calamity Ganon, o mal ancestral, mas permaneceu consciente, sofrendo uma agonia constante ao permanecer viva em uma espécie de estado espiritual onisciente, presenciando sua força minguar num luto constante por seus amigos e familiares no coração do castelo na região central de Hyrule, reino que havia jurado defender em sua missão sagrada, mas que agora repousa em ruínas por seu suposto fracasso.
A frustração, a morte e a saudade são temas recorrentes no jogo, e ainda assim, a direção de arte conseguiu aplicar esses elementos tão carregados à uma paisagem tão leve e colorida que acabam sublimados pela sensação de fazer parte de um plano maior, propondo uma epifania visual em elementos sutis, naturais. O mundo sussurra a renovação apesar de qualquer tragédia, e é desse universo vivo, vibrante, que Link encontra forças para superar o maior mal que poderia enfrentar. É esse o sopro de vida da natureza selvagem, o próprio espírito de Breath of Wild.
Então veio Hyrule Warriors: Age of Calamity. Esse jogo de ação frenética, típica dos musou, reutilizou todos os elementos que tornaram Breath of Wild o sucesso de opinião pública que é. O mapa, os modelos e estilo gráfico são exatamente os mesmos da obra que seria seu suposto sucessor cronológico. A trilha sonora se torna mais ágil e afiada, e apesar de termos os mesmos personagens, a mesma base da história e os mesmos princípios morais, o jogo não poderia ser mais diametralmente oposto no sentido de narrativa. É claro que isso se dá por seu estilo de jogabilidade, mas não só isso.
O tanto que Breath of Wild se aproxima de um ambiente de introspecção, empatia e profundo entendimento de propósitos, Age of Calamity tenta se afastar vigorosamente. O que o jogo traduz, em suas fases cheia de inimigos e desafios barulhentos, é que qualquer mal pode ser superado, mesmo aqueles que ainda acontecerão. Para isso, faz uso até mesmo de viagens temporais, com personagens cumprindo função de deus ex-machina, enviados do futuro para evitar tragédias no presente, e dessa forma, sanar todo mal que haveria de acontecer no futuro, elementos que dariam origem à história do título original. Absolutamente todo mal é superado. Não existe um único resquício de luto deixado para trás.
Em consequência dos fatos de Age of Calamity, Hyrule prospera como nunca, não existem baixas entre os personagens queridos pelo jogador, Zelda se torna uma verdadeira paladina guerreira, uma mulher madura sem dúvidas nem temores, certa de suas convicções e com propósitos cada vez mais firmes; e esse Link, que não precisou passar em qualquer momento pela série de provações que se propõe como exigências básicas na construção dos arquétipos necessários para a jornada do herói de Campbell, talvez tenha se tornado o menor protagonista de toda a franquia, se considerarmos esse musou como um episódio canônico. Quando não há sequer necessidade de uso de sua coragem, elemento que sempre o diferenciou dos demais personagens da saga, Link se torna apenas mais um general do grande exército de Hyrule.
E agora estamos às portas de mais um lançamento da franquia, que a Nintendo chama oficialmente de sequência de Breath of Wild. É impossível não ter expectativas altas para a continuação um projeto tão ambicioso, capaz de tocar tantos jogadores diferentes, mesmo depois de 4 anos de lançamento. Mais uma vez, vemos o estilo gráfico familiar nos trailers e teasers. O mapa, com algumas diferenças curiosas, também é o mesmo. E juntamente com expectativas, surgem teorias, e uma das mais aceitas é que a trama do novo jogo dará a continuação para o que foi abordado em Age of Calamity; uma consequência direta da bifurcação temporal causada pela interferência de elementos do futuro. Acredito que essa teoria precise ser discutida, porque ainda que plausível, ela é um caminho perigoso para a franquia.
Viagens temporais na franquia, nenhuma novidade até aqui.
A gente sabe que The Legend of Zelda propôs o tema de universos paralelos em diversos momentos da franquia. O primeiro a explorar essa temática foi A Link to the Past, de 1991, onde o personagem do herói reencarnado viaja entre dois mundos: um Mundo Real, onde habita no começo da história, e outro conhecido como o Mundo da Luz, que foi transformado no Mundo das Trevas quando, no passado, Ganondorf, o vilão tradicional da franquia, adquiriu a Triforce do Poder. Porém, apesar do título, nesse jogo não existem viagens temporais, apenas interferências entre duas realidades coexistentes que se interconectam.
A primeira viagem temporal realmente acontece em Ocarina of Time, de 1998, quando Link de fato viaja para o futuro e de volta ao passado, a fim de salvar Hyrule de uma destruição semelhante à ocorrida em Breath of the Wild. Mas nesse jogo, curiosamente, não podemos considerar a existência dos mundos paralelos. Trata-se do mesmo mundo em dois pontos distintos da mesma linha temporal. Não há duplicidade de elementos, apenas momentos distintos da história, separados pelo ponto central da decadência do Reino de Hyrule, ocasionada pela ascensão de Ganondorf.
Foi a partir de Ocarina of Time que alguns fãs começaram a criar uma teoria que se propõe a oficializar a linha temporal dos eventos de toda a saga de The Legend of Zelda. Essa teoria defende que os eventos do jogo de Nintendo 64 criaram uma bifurcação temporal: a primeira, uma realidade onde o Link do passado, como criança, derrotou Ganondorf antes de sua ascensão, e assim permitiu que Hyrule continuasse um reino próspero e intocado pelo mal; e a outra, uma realidade onde essa batalha nunca teria ocorrido, que renegou Hyrule ao declínio e eventualmente, à existência de um reino de trevas, como em A Link to the Past.
A questão é que essa teoria propõe uma visão macro dos eventos, e ainda que sugira diversas realidades paralelas, não pode ser considerada um multiverso, como trataremos a seguir, e além disso, nunca foi confirmada pelos criadores da franquia. Apesar de fazer algum sentido, permanece como uma ideia interessante, mas não um fato concreto, oficializado pelos escritores.
O Paradoxo de Bootstrap
Existe um conceito chamado Paradoxo de Bootstrap que ultimamente vêm sendo utilizado em histórias com elementos de viagem temporal, como no caso da série alemã Dark. Esse modelo de observação de narrativas propõe que é possível que algum personagem ou evento que ainda não exista acabe vindo a existir quando algum personagem ou elemento viaje do futuro para o presente, causando os gatilhos necessários para que os fatos se concretizem em uma espécie de ciclo fechado, onde o fim é o que dá origem ao começo, e o começo se torna a manifestação concreta do fim. Imagine que uma semente viaje do ano 2000 para 1980, quando é plantada, e ao virar árvore, em 2000, acabe gerando uma semente que viaje para 1980, e assim sucessivamente, dando sempre origem a si mesma.
Do meu ponto de vista, é esse o caso da narrativa de Ocarina of Time. Link só se torna o herói da profecia porque viajou ao futuro e viu o desfecho dos fatos do passado, que era seu presente. Sem essa viagem, onde ele pode aprender, adquirir itens, se tornar mais forte, trazendo elementos do futuro consigo, ele não haveria lutado por um desfecho positivo para a história de Hyrule. Se o tempo fosse um fio, Ocarina of Time funcionaria como um novelo cheio de nós, onde o tempo se embola, ainda que sem pontas soltas. Tudo está conectado, sem permitir influências externas.
Apesar do futuro – onde Ganondorf foi brevemente vitorioso – nunca ter deixado de existir (afinal sua realidade foi necessária para a construção do herói), sua existência também depende do passado, e portanto, são indissociáveis. Aquele futuro permanece real, porém inacessível, como uma ilha solitária no tempo / espaço, de onde não se desenvolve mais qualquer evento. Do ponto de vista da narrativa do jogo Ocarina of Time, esse braço da narrativa permaneceu congelado para sempre, sem dar origem a qualquer outra bifurcação, assim como está congelada a realidade onde ainda não existia a semente do exemplo que dei a pouco. Desde o momento que a semente existiu, a linha temporal seguirá essa realidade, e será a única realidade existente, sem interferências paralelas, independente de quantas outras sementes a árvore dê a partir do momento que a primeira viajará ao passado.
Universos Paralelos vs. Multiverso
A diferença básica entre universos paralelos, conceito comum da franquia The Legend of Zelda, e a realidade de multiversos, que até então não havia sido tratado como caminho narrativo em qualquer título, é que no segundo caso há a interferência de infinitas realidades diferentes, co-existentes, que não continuam linearmente seus caminhos; antes, se cruzam em seu desenvolvimento, podendo causar inclusive conflitos de realidade objetiva. O maior impacto de assumir que uma franquia é um multiverso é a completa negação de qualquer linha temporal prévia, uma vez que tudo pode estar acontecendo ao mesmo tempo. Isso se aproxima perigosamente da negação da narrativa de jogos posteriores, como praticado em Age of Calamity, mas é longe do proposto em Ocarina of Time, já que sua própria história não foi negada por nenhuma outra produção da franquia.
Não podemos considerar que os jogos, em suas narrativas individuais, acontecem em multiversos; mesmo aqueles que se apoiam na existência de universos paralelos, como em A Link to the Past. Neles, só existem dois universos simultâneos, com narrativas em espelho. Para ser multi, seria necessário incalculáveis realidades, de possibilidades igualmente infinitas e simultâneas. Algumas pessoas consideram que a franquia, vista como um todo, poderia ser considerada um multiverso, e de fato a relação de Age of Calamity com Breath of Wild denuncia o risco de estar tomando esse caminho, porque os ruídos e os viajantes temporais em sua narrativa são diversos, e causam inúmeros problemas na trama da história, antes considerada linear.
Pessoalmente, acredito que apesar de todos os avanços, Aonuma não apostará tão cedo em uma revolução tão grande num sentido macro dentro de uma saga de sucesso como é o coletivo de narrativas do The Legend of Zelda. Os jogos funcionam muito bem individualmente, com sua construção épica, onde o herói é desenhado de forma concreta, conforme tradição do Monomito de Campbell, que sempre foi pedra angular para histórias semelhantes, desde Senhor dos Anéis à Guerra nas Estrelas. Os universos paralelos continuam existindo, sem interferência direta nas narrativa individuais de cada jogo. Alguns elementos retornarão, com certeza, como referência e como fan service, mas nada disso precisa ser abraçado como uma linha de tempo absoluta naquela realidade específica, daquele título específico.
Abraçar a existência de um multiverso apagaria a força de diversos elementos da franquia, ao meu ver. O espírito da coragem do herói reencarnado, a deusa purificadora que desperta seus poderes em uma governadora benigna, o poder que corrompe ressuscitando mais uma vez o mal milenar; poderiam ficar à sombra do constante risco de nada disso importar. Se os mundos são infinitos, em algum desses a sabedoria da deusa é corrompida, o poder é benigno, e portanto, a coragem é irrelevante. Centenas de heróis podem existir juntos, um mais preguiçoso que o outro, e toda a força épica da franquia será perdida. No fim, nenhuma dessas referências que a gente ama encontrar, como se fossem easter eggs cuidadosos no decorrer do jogo, servirão como apoio para essas teorias que o fã ama fazer. Afinal, se tudo é possível, inclusive viajar no tempo para derrotar o mal antes que ele sequer aconteça, nenhuma dor é real. A concretude de analogias com sentimentos reais, com referências de tempo e espaço, se tornarão irrelevantes, pois tudo pode mudar a qualquer momento.
Esse tipo de construção de universo pode funcionar bem para narrativas ágeis, divertidas, despretensiosas, mas The Legend of Zelda sempre trilhou caminhos mais transcendentais. A questão aqui não é tanto divertir, mas sim representar a profunda beleza de uma narrativa épica. Dessa vez, torço para que o caminho tradicional seja preservado, para que não percamos essa essência tão preciosa.