O novo game de Evan Rogers (What Remains of Edith Finch – Giant Sparrow), me deu uma pedrada na cara. Felizmente, ou não, essa pedrada era necessária.
A obra é totalmente autoral, roteiro, arte e talvez até autobiográfica (Evan?). Legendary Gary é um marco para os Indie games, já sendo um dos nomes fortes de 2018. O game nos traz uma análise, muito bem construída, de uma fase da vida dos próprios gamers, principalmente para aqueles que estão beirando os 30 anos.
GARY
Não espere protagonistas brilhantes e overpowers, dobradores de mundos e salvadores do universo. Espere um protagonista muito mais “íntimo” e talvez já conhecido em uma realidade “muito mais” aumentada. A do próprio gamer.
Gary é um jovem de 20 e muitos anos com uma vida suburbana típica, amigos, namorada, mãe, jogos de RPG e desmotivação. O game mostra uma fase bastante complexa na vida de qualquer um/Gary: uma vida estagnada sem motivação para o futuro, sem perspectivas, valores inexistentes e falta de sonhos realizáveis, um típico jovem do século XXI, o oposto dos nossos avatares virtuais.
Tudo é visto -apresentado- através de uma relação comum atualmente: que é a de como jogamos nossos games e o significado/importância que damos para eles.
Você controla Gary na sua vida rotineira, que está terrível em diversas áreas. Com uma mãe fanática religiosa, amigo depressivo, namoro em crise, necessidades financeiras e cobranças por independência. Nesse turbilhão de problemas ele tem uma fuga/amparo, um RPG chamado “Legend of the spear” , sua zona de conforto, seu refugio. Um tactics turn hexagonal com músicas, cores e uma ambientação muito viva e calma. A fuga perfeita da rotina.
Um local onde Gary pode tirar sua frustração e desmotivação rotineira, um lugar onde tudo que nossas almas nerds desejam, um objetivo e grandezas a serem conquistadas, nos são disponibilizados. E acima disso, as conquistas são alcançáveis.
Legendary Gary no final pode ser visto como dois jogos distintos, o dia-a-dia de Gary e sua contra parte heroica dentro do tactics turn. Mas defini-lo assim seria uma visão rasa e supérflua .
Um RPG dentro de um RPG. Será?
No primeiro momento achamos que são dois games distintos: um focado na narrativa e o outro em tactics turn com uma história batida de salvar o reino. Primeira quebra dessa percepção é quando fatos rotineiros de Gary (cuidar das plantas do quintal) interagem (buffs) no tactics turn dele. Outras ações de sua rotina podem ajudar ou prejudicar decisões ingame.
Esse relato acima foi a primeira percepção da ligação dos mundos de Gary, com o desenrolar das histórias percebemos que muitos personagens da vida de Gary possuem um correlato (ou algo próximo) dentro do Tactics, tudo perceptível pelo som e dublagem semelhantes, comportamento e até mesmo aparência similar.
Muitas vezes o NPC/parente de Gary aparece exposto com virtudes e/ou defeitos maximizados, como se fosse o modo que Gary vê aquele parente idealizado no tactics, uma sincronia/auto-análise que é uma forma brilhante de enxergar com os olhos de Gary.
Legend of the spear
O tactics turn é o ponto de relaxamento da história, sua mecânica permite ver o resultado antecipado da sua ação e até refazer turnos inteiros. Evitando o stress clássico dos tactics turns (Né, FF Tactics), a partir dos momentos de descontração de Gary.
As arenas são hexagonais e com mecânica que se adensa com a entrada de outros membros na equipe, mas nada realmente desafiador.
A arte
Desenhada à mão, com traços bem únicos, visualmente Legendary Gary é um jogo rico em tonalidades, combinações de cores e efeitos visuais. Fatalmente você irá se pegar espiando os cenários e viajando nas combinações de cores.
Nada excepcional, mas também não simplório a ponto de se esquecer totalmente. Uma estética que merece atenção pela sua singularidade, algo único, como Gary e cada um de nós.
Som
A aventura de Gary passa com uma trilha sonora no estilo Synth Pop bem relaxante que mantem a aura do jogo, relaxante e quase psicodélico, toda ela criada pelo xXsickXx.
Os efeitos sonoros são o ponto fraco, não estão totalmente polidos, alguns momentos a repetição e falta de sincronia da música nos chama a atenção. As músicas necessitavam de uma preparação maior para estarem ok, sendo este o pior fator do game. O que não estraga, nem de longe, a experiência marcante que é jogar Legendary Gary.
Conclusão
Parabéns Evan Rogers, missão cumprida, a obra conseguiu fazer com que os gamers reflitam sobre a vida e seu uso abusivo (ou não) dos games. A necessidade/tentativa de fuga das nossas vidas para um universo “melhor”. A obra foi feita com um esmero enorme que não deixa essa situação/análise dos gamers sair como algo raso e “de fora”. Sendo um gamer e desenvolvedor com uma longa carreira, ele conseguiu ver o melhor e pior do nosso mundo e expor para aqueles que tiverem vontade (necessidade) de jogar e refletir.
Legendary Gary, crivo que é o melhor Serious Game de 2018, e olha que esse ano sai Frostpunk. Pode ser encontrado somente para PC via Steam.